No dia 13 de junho de 2021, dia em que se celebrava 133 anos do nascimento de Fernando Pessoa, a Senhor Corvo Artes do Imaginário fez uma live com a escritora Manuela Nogueira, sobrinha de Pessoa; com o escritor Eduardo Pastore, autor do livro ‘Eu em Pessoa” e com a médica Conceição Andrade, fundadora de um grupo de estudos sobre o livro do Desassossego.

Apresentada por Sonia Zaghetto e com três poemas de Fernando Pessoa recitados por Cláudio Chinaski, a live em homenagem ao grande poeta português trouxe momentos de grande emoção. Manuela Nogueira falou de um Fernando Pessoa que poucos conhecem: um tio amoroso, que escondia presentes sob os guardanapos da mesa, que fazia rir às crianças ao simular tropeços nos lampiões da rua, aos quais pedia desculpas como se fossem homens. Um homem sensível, que se apaixonou pela filha da lavadeira, que bondosamente tratava os humildes e que desejou compensar com brincadeiras a solidão da infância dos seus dois únicos sobrinhos. E por tanto se doar aos pequenos, os outros adultos o repreendiam: “Fernando, não deves fazer assim. Os vizinhos hão de pensar que és louco”, advertia a irmã. A morte do poeta, suas relações familiares e a obra de Manuela Nogueira estão entre os demais temas abordados. Um dos pontos altos da noite foi a peça musical Un soir à Lima, tocada pelo pianista Alexandre Romariz e dedicada a Manuela. A música inspirou um poema homônimo de Fernando Pessoa (leia texto completo abaixo).

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Os links para os livros e locais mencionados na live você encontra a seguir:

Livro “Meu Tio Fernando Pessoa”, de Manuela Nogueira

Livros diversos de Manuela Nogueira – Amazon

Casa Fernando Pessoa

Biblioteca particular de Fernando Pessoa (online). Grande parte dos livros que pertenceram aos escritor está guardada – e alguns expostos – na Casa Fernando Pessoa, em Portugal. Esta biblioteca é especialmente importante pelas anotações (marginalia) que Fernando Pessoa deixou em muitos exemplares – quer sobre a leitura, quer partes de poemas ou assuntos do quotidiano. Pode ser consultada online.

Arquivo Pessoa – A obra completa do escritor.

Livro Fernando Pessoa na Intimidade, de Isabel Murteira França. Datado de 1987, este livro da sobrinha-neta de Fernando Pessoa, é baseado em uma entrevista feita pela autora com a sua avó e irmã do poeta, Henriqueta Madalena. Um depoimento essencial para os que buscam informações confiáveis sobre o poeta.

Livro Eu em Pessoa, de Eduardo Pastore. (Editora Chiado/2020). Inserido na lista dos dez livros essenciais recomendados pela equipe do caderno ‘Alias’ do jornal “O Estado de São Paulo” em janeiro de 2021, é uma reverência literária a Fernando Pessoa. Na definição do livro, na Amazon, se lê que a primeira parte, denominada de Cartas Pessoanas, é uma intensa declaração de amor, através das cartas, de dois poetas que se conheceram depois da morte de um deles. Pastore coordena o grupo denominado “Pessoas que gostam de Pessoa”, no Facebook. Contatos para compra direta (WhatsApp): +55 (13) 99189-8678.

Grupo “Pessoas que gostam de Pessoa” (Facebook)

Un soir à Lima

O dia 17 de setembro de 1935, dois meses e treze dias antes da sua morte, foi a data que Fernando Pessoa pôs em um poema longo, Un soir à Lima. Tudo indica que o poema não foi escrito de uma só vez. Está espalhado em diversos fragmentos. É o retrato pungente de um homem que contempla o passado feliz e se lamenta perante a aspereza dos dias presentes. Uma leitura atenta da biografia de Pessoa revela a veracidade da frustração, saudade, vergonha e angústia expressas no poema. Nada ali é inventado. Tudo é a matéria da vida. Aquela era a dor real que transpassava a alma de Pessoa nos dias que lhe antecederam a morte.

O poema nunca finalizado narra a sequência dos fatos que levaram Pessoa a escrevê-lo: o poeta escutava um programa de rádio quando ouviu o locutor anunciar uma peça musical que lhe fez disparar o coração: «Un soir à lima». A canção do compositor belga Félix Godefroid,  então muito famoso na Europa, causou grande efeito sobre o o escritor. Ele instantaneamente lembrou-se dos anos felizes que passou com a família em Durban, na África do Sul, e dos serões familiares, com a sua mãe tocando a canção ao piano. Ali estava a figura do bondoso padrasto que o amava, da irmã e da mãe – figura central na vida de Pessoa. É à figura materna que ele dedica mais versos: à silhueta, aos cabelos, às delicadas mãos. É perante essa lembrança cálida que o poeta desaba. Ali estava ele, com sua prodigiosa inteligência e seu raciocínio lógico, ajoelhado, com o bolso vazio, sem uma carreira sólida. Envergonhava-se, solitário e triste, de nada haver conquistado para si. Ironicamente, é a voz daquele que se tornaria o maior poeta contempoprâneo português, orgulho da nação lusitana, adorado por multidões em todo o planeta.

Em lágrimas impulsionadas pelas memórias da infância feliz, Pessoa produziu o extenso poema que você lê abaixo, logo depois da interpretação especial do pianista Alexandre Romariz para a peça musical de Fèlix Godrefroid.

Dedique alguns minutos para ler o poema. Depois, feche os olhos e ouça a música. Deixe-a fluir. Ouça-a com os ouvidos emocionados de Fernando Pessoa.

Un soir à Lima

Vem a voz da radiofonia e dá
A notícia num arrastamento vão:
“A seguir
Un Soir à Lima“…

Cesso de sorrir…
Para-me o coração…

E, de repente,
Essa querida e maldita melodia
Rompe do aparelho inconsciente…
Numa memória súbita e presente
Minha alma se extravia…
O grande luar da África fazia
A encosta arborizada reluzente.

A sala em nossa casa era ampla, e estava
Posta onde, até ao mar, tudo se dava
À clara escuridão do luar ingente…
Mas só eu, à janela.
Minha mãe estava ao piano
E tocava…
Exatamente
“Un Soir à Lima”.

Meu Deus, que longe, que perdido, que isso está!
Que é do seu alto porte?
Da sua voz continuamente acolhedora?
Do seu sorriso carinhoso e forte?
O que hoje há
Que m’o recorda é isto que ouço agora
Un Soir à Lima.

Prossegue na radiofonia
A nossa, a sua melodia
O mesmo “Un Soir à Lima”.

Seu cabelo grisalho era tão lindo
Sob a luz
E eu que nunca pensei que ela morresse
E me deixasse entregue a quem eu sou!
Morreu, mas eu sou sempre o seu menino.
Ninguém é homem para a sua mãe!

E inda através de lágrimas não falha
Á memória que tenho
O recorte perfeito de medalha
D’aquele perfeitissimo perfil.
Chora, ao lembrar-te, mãe, romana e já grisalha,
Meu coração sempre infantil.
Vejo teus dedos no teclado e há
Luar lá fora eternamente em mim.
Tocas em meu coração, sem fim,
Un Soir à Lima.

O silêncio fatal das coisas findas
As tuas mãos pequenas e tão lindas
Com escrúpulo risonho e familiar
Com um sorriso em que não há
Nada senão o eternamente humano
Tiravas da quietude do piano
Un Soir à Lima.

Tinhas, perfil, um rosto de medalha
Eras de frente, e olhando, a minha mãe
Como hoje o teu olhar me falha
E o teu perfil me lembra bem

“Os pequenos dormiram logo?”
“Ora, dormiram logo”.
“Esta está quase a dormir”
E tu, sorrindo ao responder continuavas
O que tocavas —
Atentamente tocavas —
Un Soir à Lima.

Tudo que fui quando não era nada,
Tudo que amei e sei só em verdade
Que o amei por não ter hoje estrada,
Que tenha qualquer realidade.
Por não ter d’ele mais que a saudade —

Tudo isso vive em mim
Por luzes, música e a visão
Que não tem fim
D’essa hora eterna no meu coração,
Em que voltavas
A folha irreal da música a tocar
E eu te ouvia e via
Continuar
A eterna melodia
Que está
No fundo eterno d’esta nostalgia
De quando, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.

E o aparelho indiferente
Traz da emissora inconsciente
Un Soir à Lima.

Eu não sabia então que era feliz.
Hoje, que o já não sou, sei bem que o era.

“Esta tambem está a dormir…”
“Não está”
Ficamos todos a sorrir
E eu distraidamente vou
Continuando a ouvir,
Longe do luar que há
E que lá fora existe duro e só,

O que me faz sonhar sem o sentir,
O que hoje por que tenho de mim dó
Esse canto sem voz, teclado e brando
Que minha mãe estava tocando —
Un Soir à Lima.

Não ter aqui numa gaveta,
Não ter aqui numa algibeira,
Fechada, haurida, completa,
Essa cena inteira!
Não poder arrancar
Do espaço, do tempo, da vida
E isolar
Num lugar
Da alma onde ficasse possuída
Eternamente
Viva, quente,
Essa sala, essa hora,
Toda a família e a paz e a música que há
Mas real como ali está
Ainda, agora,
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.

Mãe, mãe, fui teu menino
Tão bem dobrado
Na sua educação
E hoje sou o trapo que o Destino
Fez enrolado e atirado
Para um canto do chão.

Jazo, mesquinho,
Mas ao meu coração
Sobe, num torvelinho
A memória de quanto ouvi do que há
No que há de carícia, de lar, de ninho,
Ao relembrar o amor, hoje, meu Deus, sozinho,
Un Soir à Lima.

Onde é que a hora, e o lar e o amor está
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima?

E num recanto de cadeira grande
Minha irmã,
Pequena e encolhidinha
Não sabe se dorme se não.

Eu tenho sido tanta coisa vil!
Tenho traído tanto do que sou!
Meu espírito sedento
De raciocinador sutil
Quantas vezes prolixamente errou!
Quantas vezes até o sentimento
Inanimadamente me enganou!

Já que não tenho lar,
Deixa me estar
Nesta visão
Do lar de então
Deixa-me ouvir, ouvir, ouvir —
Eu à janela
Do nunca mais deixar de sentir,
Nessa sala, a nossa sala, quente
Da África ampla onde o luar está
Lá fora vasto e indiferente
Nem mal nem bem
E onde, no meu coração
Mãe, mãe
Tocas visivelmente,
Tocas eternamente
Un Soir à Lima.

A minha raiva de animal humano
A quem tiraram a mãe,
E não tem
Para o menino que lhe na alma há,
Para lhe encher o coração,
Mais que esta visão —
As tuas mãos pequenas pelo piano
Quando, oh meu Deus, tocavas
Un Soir à Lima.

Ai, mas é engano.
Aqui sou velho
Não há sala nem há piano
Nem tu existes a tocar,
Há um aparelho mudo
De onde um som vem de longe, e dói
Como é que eu te darei um beijo agora?

Eu poderia, vindo da janela,
Como tantas vezes fiz
/* /

O raciocinador exato
Cuja alma está em mil pedaços,
Em mil pedaços que nem há…
Deixa-me dormir
E sonhar de estar vendo, a ouvir,
Un Soir à Lima.

E era nesta calma,
Nesta felicidade
Em que existia uma alma
(Meu Deus, que saudade!),
Que, sob a luz que dourava,
(Hoje onde é que isso está?)
Longe de onde o luar prateava,
Minha mãe tocava
Medalha atenta e humana ao piano,
Un Soir à Lima.

Desde então
Tenho atravessado
Muitas vidas.
As mais das vezes tenho errado.
Meu coração
Pesa de coisas esquecidas.
Desde quando
Nesse brando
Conforto do meu lar extinto
Eu, à janela, ouvia, hirto e sonhando,
Ermo e indistinto,
O que há
Em toda a música de intuição e instinto,
Quanto tenho deixado morrer
Dentro do que quis ser,
Quanto tenho deixado
Só pensado,
Quanto, quanto,
Tem sido para mim somente sonho,
Somente o encanto,
Tristemente risonho
De o ter sonhado,
Quem sabe se a saudade
Transmutada num devaneio meio humano
De quanto nessa noite está,
Longínqua, em que, mamã, ao piano
Tocavas, sob a crua claridade,
Un Soir à Lima.

Pesa-me o coração. Um torpor denso
Ocupa-me a consciência de 
E um frio informe, desolado e denso
Não me deixa pensar.

Num balouçar-me, num embalar
Relembro tudo, relembro em vão.
Meu Deus, isso tudo onde está?
Un Soir à Lima
Quebra-te, coração!…

Meu padrasto
(Que homem! que alma! que coração!)
Reclinava o seu corpo basto
De ahleta sossegado e são
Na poltrona maior
E ouvia, fumando e cismando,
E o seu olhar azul não tinha cor.
E minha irmã, criança,
No recanto da sua poltrona
Enrolada, ouvia a dormir
E a sorrir
Que estava alguém tocando
Se calhar uma dança…

E eu, de pé, ante a janela
Via todo o luar de toda a Africa inundar
A paisagem e o meu sonho.

Onde tudo isso está!
Un Soir à Lima
Quebra-te, coração!

Essa mão pequenina e branca,
Que nunca mais me afagará,

Sorrias, rindo, para mim
Esse sorriso que já teve fim,
E continuavas tocando
Un Soir à Lima.

E eu que /*nunca pago/ † † †
E a † só † o que eu sou…

E é uma emissora indifferente
Que por um apparelho inconsciente
Em música, só, música me dá
A angústia viva que me vem
De te ver, por me lembrar,
Minha mãe, minha mãe,
Tão tranquila, tocar
Un Soir à Lima.

Mas entorpeço.
Não sei se vejo, se adormeço,
Se sou quem fui,
Não sei se lembro, nem se esqueço.
Ha qualquer coisa que indistinta flui
Entre quem sou e o que eu era
E é como um rio, ou uma brisa, ou um sonhar,
Qualquer cousa que não se espera,
Que se suspende de repente
E, do fundo onde ir acabar,
Surge, cada vez mais distintamente,
Num halo de suavidade
E nostalgia,
Onde o meu coração ainda está,
Um piano, uma figura, uma saudade…
Durmo encostado a essa melodia —
E ouço que minha Mãe toca,
Ouço, já com o sal das lágrimas na boca,
Un Soir à Lima.

O véu das lágrimas não cega.
Vejo, a chorar,
O que essa música me entrega —
A mãe que eu tinha, o antigo lar,
A criança que fui,
O horror do tempo porque flui,
O horror da vida, porque é só matar.
Vejo, e adormeço
E no torpor em que me esqueço
Que existo ainda neste mundo que há…
Estou vendo minha mãe tocar.
Essas mãos brancas e pequenas,
Cuja caricia nunca mais me afagará,
Tocam ao piano, cuidadosas e serenas,
Un Soir à Lima.

Ah, vejo tudo claro!
Estou outra vez ali.
Afasto do luar externo e raro
Os olhos com que o vi.

Mas quê? Divago, e a música acabou…
Divago como sempre divaguei
Sem ter na alma certeza de quem sou,
Nem verdadeira fé ou firme lei.

Divago, crio eternidades minhas
Num ópio de memória e de abandono.
Entronizo fantásticas rainhas
Sem para elas ter um trono.

Sonho porque me banho
No rio irreal da música evocada.
Minha alma é uma criança esfarrapada
Que dorme num recanto obscuro.
De meu só tenho,
Na realidade certa e acordada,
Os trapos da minha alma abandonada
E a cabeça que sonha ao pé do muro.

Mas, mãe, não haverá
Um Deus que me não torne tudo vão,
Um outro mundo em que isso agora está?
Divago ainda: tudo é ilusão.
Un Soir à Lima

Quebra-te, coração…

(Fernando Pessoa, Poemas de 1934-1935. Ed. Luís Prista, Lisboa, 2000)

Image
Fernando Pessoa e sua mãe, Madalena

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